domingo, 10 de janeiro de 2010

118 - Memórias de cristal

A princesa canta enquanto pula no colchão de molas. Dizem que nunca fora princesa, mas ela sabe que é e pode provar: a quase imperceptível coroa em sua cabeça não permite que ninguém desminta a sua realidade.
A garota fica a cantar uma música tola e apaixonadinha. Uma canção que ouviu em um dos vinis dos seus pais. Ela se lembra muito bem de todas as cores, desenhos e detalhes do encarte, mas não se lembra do nome da banda e do disco. Ela é conhecida por guardar detalhes desnecessários e esquecer o que é imprescindível.
Sua majestade cansa de pular e cantar aos gritos e deita já ofegante na cama. Ouve passos vindos do corredor e alguém bate na porta:
- Filha, vem jantar!
- Não estou com fome... Mais tarde eu como alguma coisa.
Os passos rumam de volta à escada. E o som dos mesmos vai se atenuando até ficar reduzido demais para que ela escute.
“Filha, vem jantar!”, que insolência! Amélia era uma princesa e nunca entendia porque todos a tratavam uma pessoa normal. Desde o último inverno tudo que sua mãe fazia lhe deixava nervosa, mas tratá-la assim, como uma simples pré-adolescente era o que mais a enraivecia. Afinal, a sua maior, e talvez única certeza era a de que fora achada em algum lugar perdida e depois adotada, já que aquela família era normal demais para possuir um membro legítimo da realeza.
Se ela se esforçasse bastante conseguia até fazer surgir uma lembrança: vagando pelas ruas chorando, com um vestido todo branco e com uma pequena coroa cintilante repousando sobre os cachos loiros. Mas não se lembrava de nada anterior a isso e também não se lembrava de quando fora encontrada pelos pais adotivos...
A prova de que aquela lembrança não era apenas um devaneio, repousava agora sobre os mesmos cachos loiros que apenas estavam um pouco mais longos. A coroa era bem pequena, afinal era quase que um souvenir do passado misterioso. Seus “pais” bem que tentaram escondê-la no fundo de um baú no porão. Eles sabiam muito bem que ela evitava ir lá por motivos inexplicáveis. Mas a curiosidade superou o receio e de tanto sonhar com a coroa, a casa inteira ela vasculhou até achá-la.
Ela ficava só pensando no motivo de eles esconderem tudo dela assim. Sobre o seu nascimento, adoção, pais biológicos. Ela já era uma mocinha e tinha todo o direito de saber sobre seu passado nobre. Afinal ela havia sido abandonada ou só havia se perdido?
Um tanto irritada com aquela corrente de mentiras, ela abriu a porta rapidamente, correu em direção às escadas e desceu as mesmas sem nenhuma cautela. No meio da descida ela tropeçou nos próprios pés e saiu rolando escada abaixo.
Ficou por um certo tempo inconsciente, ao acordar notou que não havia ninguém ali, ela parecia ter sido transportada para outro lugar... Um lugar todo branco, sem escadas, com apenas uma porta e uma cama velha sob um colchão de molas empoeirado. Ela olhava para todos os cantos tentando entender o que acontecia quando percebeu que a coroa não estava em sua cabeça e os cabelos não eram mais loiros e nem encaracolados.
Seus cabelos eram ruivos e muito lisos, um tanto desgrenhados e longos em demasia. Ela não compreendia nada, o que acontecera? Onde ela estava? Passava a mão no rosto e seu rosto, aquele rosto que não era o seu, era um rosto mais sofrido e mais antigo. E ao gritar de desespero percebeu que a voz também não era a mesma:
- Mãe, o que está acontecendo? Onde eu estou, mãe? Tira-me daqui!
E nada de resposta... Ela engole em seco, onde estaria sua mãe? Ela volta a gritar por ela e de repente ouve ao longe alguns passos e a voz de alguém que aos poucos vai se aproximando:
- Filha, vem jantar! Filha, vem jantar! Filha, vem jantar! – a voz vai ficando cada vez mais alta e ela percebe que aquela é a voz de sua mãe.
Ela corre em direção a porta e observa por uma fresta bem pequena alguém nunca antes visto passando e dizendo “Filha, vem jantar”. Essa pessoa repete a mesma coisa incessantemente com a voz da mãe adotiva da princesa.
Alguém lá fora percebe uma movimentação intensa vinda do quarto 57 e resolve destrancar a porta. É um homem de cabelos muito loiros e roupas extremamente brancas, com um meio sorriso no rosto:
-Liga não, essa é a frase da semana de Charlote. Agora mesmo eu trago seus remédios, apesar de você estar tão bem ultimamente. Melhor prevenir do que remediar, não acha, Desiré?
Edmond fecha a porta e se afasta vagarosamente, guiando Charlote pela mão direita. Quando ela não consegue mais ouvir os passos de Edmond e nem a voz de Charlote, Desiré solta um grito que lhe rasga a alma e as memórias de cristal se espatifam no piso branco.

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